6:05Os segredos do inferno

Publicado no New York Times e reproduzido na Folha de São Paulo:

por Tomás Eloy Martínez*

Rubem Fonseca, o misterioso escritor que conhece os segredos do inferno

O escritor brasileiro Rubem Fonseca vai completar 84 anos, e um editor no Brasil me conta que está em decadência, que seus livros não são mais o que eram, como se esquecesse que aos 84 anos todas as luzes tendem a enfraquecer. O editor me diz que suas últimas três obras, “Mandrake: A Bíblia e a Bengala” (2005), “Ela e Outras Mulheres” (2006) e “O Romance Morreu” (2007) tiveram poucas resenhas, compassivas.

No entanto, ele continua sendo lido como o criador mais original de uma literatura rica em criadores originais, desde os maravilhosos escritores brasileiros Joaquim Maria Machado de Assis e Mário de Andrade até os desconcertantes Clarice Lispector e João Guimarães Rosa.

A biografia de Fonseca é uma série de surpresas: ex-policial que aprendeu nas ruas os labirintos das intrigas criminosas, vive há décadas no anonimato e no silêncio, negando-se a entrevistas e frequentando poucos amigos. Um deles é outro recluso famoso, o escritor nova-iorquino Thomas Pynchon, do qual nem se conhece a face.

Nunca esquecerei a primeira vez que o li, durante as últimas semanas de meu exílio em Caracas. Eu estava sentado a uma mesa junto da calçada, esperando um amigo. Como a espera se prolongava, atravessei até a livraria em frente em busca de algum texto para me entreter. Um dos vendedores me recomendou um volume de contos que, segundo ele, havia lido com a alma em suspenso, sem poder dormir.

Assim caiu em minhas mãos “Feliz Ano Novo”, na tradução espanhola de Pablo del Barco. Mal entrei na atmosfera trivial de “Passeio noturno, parte 1”, ouvi bater os tambores do inferno e nada mais foi igual para mim. Essas poucas páginas bastaram para que o universo de Fonseca me tatuasse a alma com a malignidade de uma flor carnívora.

Naquele tempo, toda crueldade inútil parecia possível. As ditaduras militares do sul da América se encarniçavam com os dissidentes, e em Caracas – assim como na Cidade do México, em Paris e Madri – erravam milhares de imigrantes expulsos pelos maus ventos do despotismo. Os sociólogos discutiam sobre a construção social do medo e associavam a violência ao poder.

Fonseca explorava esses vínculos e ia além, movendo-se em um limbo onde não havia consciência política nem desolação moral, mas a pura e simples condição humana entregue a suas incredulidades e a sua desolação sem esperança.

Seus personagens habitavam – e lá estão ainda – um mundo anterior a Deus, ou no qual Deus é desnecessário. Não há pecado, não há culpa, não há nada senão um mal incessante, sem consciência. Se o mal é uma ocupação, um trabalho, uma distração, uma pequena chama que arde porque sim no deserto da vida cotidiana, então qual é a transcendência do mal?

Fonseca instala o medo no interior da linguagem, cada uma de suas palavras é como uma nota musical arrancada da sinfonia do mal. Muito poucos conseguiram, como ele, criar um personagem com apenas dois ou três traços, urdir tramas das quais nunca se veem as costuras.

Quando o Cobrador de seu livro “O Cobrador” diz: “Digo, dentro de minha cabeça e às vezes para fora, todos têm de me pagar! Me devem comida, vaginas, cobertores, sapatos, casa, carro, relógio, dentes: me devem tudo”, sua vida inteira cabe nessas linhas. O Cobrador supõe que algum outro está vivendo sua vida por aí sem que ele saiba. Se quiser recuperar o perdido, terá de fazê-lo passo a passo. Não se deve desperdiçar o ódio, repete.

Nessa ideia parece estar a chave do brevíssimo relato intitulado “Passeio noturno, parte 1”. É a misteriosa história de um pai de família, piedoso e bom burguês, que sai todas as noites em seu carro em busca de transeuntes solitários. Escolhe ruas desertas, dirige com cuidado, estuda a velocidade e o peso dos caminhantes inadvertidos, olha para um lado e outro e, de repente, investe contra a vítima: um golpe seco, certeiro, devastador. Nunca falha. Volta para casa, janta com a família, reza, se deita. E assim dia após dia, como quem vai ao escritório. Que tipo de sujeito será o que imaginou isso?, me perguntei.

Nenhum escritor é mais cinematográfico que Fonseca. As transições de uma cena para outra são feitas sem dar explicações, de maneira natural. Além de policial, foi crítico de cinema e advogado penal. Litigou para salvar da injustiça mulatos sem dinheiro e sem dentes. Isso, no entanto, explica só em parte sua capacidade para penetrar as dobras da vida marginal e tirar dali uma linguagem cujo sentido vai sempre além do que se diz.

Depois daquele primeiro conto, me dediquei com afã a ler tudo o que Fonseca escreveu, sem jamais me decepcionar. Em 1993, quando lhe deram o Prêmio Juan Rulfo no México, na Feira do Livro de Guadalajara, e mesmo antes, quando foi a Lisboa receber o Prêmio Camões, os que conseguiram falar com ele me repetiam: “Você precisa conhecê-lo”.

Não quis, porque para apanhar um autor fugitivo não há melhor lugar que seus livros.

Que suas histórias sejam tecidas com violência e crime faz pensar mais em Dashiell Hammett que em Raymond Chandler, embora seu cínico advogado Mandrake pudesse se parecer com o detetive Marlowe se não fosse vil, corrupto e enxadrista.

Mas Fonseca não se parece com ninguém. Sua linguagem muda de um relato para o outro. Não é a mesma a voz desesperada do lutador no ringue de “Desempenho” e a voz predadora de “O Corcunda e a Vênus de Botticelli”, assim como também não há nada parecido entre a voz educada de Mandrake e a curiosidade amorosa do narrador de “Copromancia”, que encontra o sentido do mundo na leitura das fezes.

Todos eles criam beleza mediante a profanação da beleza, são todos filhos de um mundo sem Deus. Os personagens de Fonseca sabem sempre por que fazem o que fazem. Só o leitor fica de fora, pasmo, não porque o texto deixe algo sem explicar ou porque a claridade tenha desaparecido no caminho, mas porque a violência cruza todos os limites e se põe longe de seu alcance. É uma violência tão excessiva que abarca tudo, mas não se vê.

Respiramos sua atmosfera tóxica e não percebemos. Em Kafka, os personagens aceitam resignados o absurdo em que estão metidos, porque o absurdo é o eixo, a razão de tudo. Em Fonseca, o leitor contempla fascinado um absurdo feito de omissões e de silêncios que só os personagens entendem.

Diante de cada relato de Fonseca, lembro sempre dos extremos de individualismo e amoralidade que pregou o escritor William Faulkner em uma entrevista publicada por “The Paris Review”:

“O artista é responsável só por sua obra. Se é um bom artista, será completamente impiedoso. Tem um sonho, e esse sonho o angustia tanto que precisa se livrar dele. Enquanto não se livrar, não terá paz. Joga tudo pela borda: a honra, o orgulho, a decência, a segurança, a felicidade, tudo, para escrever seu livro.”

Essas palavras são escandalosas mas não excessivas: no horizonte da história, os homens terminam por ser sua obra, mais que eles mesmos.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

*Tomás Eloy Martínez
Analista político e escritor, o argentino Tomás Eloy Martínez é autor de livros como “Vôo da Rainha” e “O Cantor de Tango”.
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