por Osman Gadoso

Câncer

É muito fácil adiar as ações que verdadeiramente contam, que são capazes de milagres. Já as fúteis, como atravessar ruas inundadas de carros, só para comprar o sapatinho que um dia te encantou e que você, talvez, nunca o use, só para vê-lo ali em meio às dezenas de pares, ah, isso precisa ser feito – e já! Ele tinha acabado de comprar um anel de brilhantes para a mulher com quem estava casado há anos porque ela viu o bilhete apaixonado que mandar para outra pelo celular. Que presepada! Estava com a cabeça assim, parecendo fundo de lata de lixo, quando viu, de dentro do carro, num relance, alguém que parecia conhecido. Estacionou. Foi atrás. Era mesmo. Companheiro de colégio e faculdade. Mas cheirava mal, as roupas rasgadas, podres e, nos braços, feridas na junção, feridas resultantes dos baques, das agulhas das seringas que injetam drogas. Trocaram algumas palavras. O amigo drogado lhe deu um endereço. Disse isso com um sorriso. De dentres podres, mas um sorriso. Pediu para que fosse visitá-lo. Era um mocó na rua Riachuelo, fácil de achar. Se separaram. O da roupa limpa foi para casa pensando em ajudar o amigo. Entregou o anel, fez sexo como nunca antes. A mulher esqueceu o bilhete. No dia seguinte viajaram em lua de mel, a décima quinta, como o número de brigas feias. No retorno, ele ainda lembrou um dia que tinha uma amigo num mocó da Riachuelo. Mas não foi. Nem parou o carro um dia que passou por lá. Um dia acharam o drogado. Morreu com a seringa espetada na ferida. Depois soube-se que injetara água de bateria depois de consumir a cocaína misturada com pó de vidro e sal de fruta. Tinha um sorriso nos lábios. Os policiais estranharam. Era o mesmo sorriso que deu ao se encontrar o amigo e ouvir que a promessa que iria receber sua visita em breve. Um dia, o sol fez o diamante do anel recebido pela mulher naquela noite brilhar. Um deserdado da vida olhou e imaginou quantos picos lhe renderiam se decepasse aquele dedo.