16:51Ricardo Silva, meu irmão

O que é ter um irmão? De repente ele vem lá não sei de onde, porque sou do tempo da cegonha, mais um bebê no colo da dona Zefinha é eu com ciúme, claro, afinal, quando mesmo que ela me segurou daquele jeito? Minha barriga enorme já tinha sumido, junto com a foto que rasguei de vergonha daqueles vermes e lombrigas todas, mas o gosto do tijolo e de terra ainda estava entranhado quando Ricardo veio ao mundo, depois que a menina “não vingou, como se diz ainda lá pelas bandas do Sítio São José, município de Palmeira dos Índios, Alagoas, origem de tudo. Talvez por isso tenha ficado distante dele, assim como o pai da gente, mas não por querer, por doença mesmo essa tal de depressão que anos mais tarde quase me leva, a meu irmão e ao velho Zé Luis também, porque a dor só poderia ser aliviada por álcool, nossa alma doída imaginava. Vivi mais com minha tia, que é mãe, Antonia, Tonha, depois fui ao mundo nas asas desta profissão. Sabia dele, da sua vocação para o desenhos, das suas loucuras com a turma do underground paulistano, e de sua partida para acompanhando a família no retorno ao Nordeste, para fechar o ciclo do pau-de-arara tradicional. A distância geográfica aumentou, a das almas continuou a mesma, acho que esperando a hora, porque, acredito, normalmente guardamos em gavetas sentimentos nobres, sem saber porque. Tenho pena daqueles que morrem sem abrí-las. Eu fui abrindo as minhas depois dos internamentos, depois de ter começado a perder o medo de me olhar. Primeiro resolvi o nó com papai, muito ante dele partir. Mamãe era preservada, mas olhei ela direito de cima de um divã e ainda descubro sua dimensão. A sua entrega, a sua lição de amor me veio como sol no rosto no dia em que viajei três mil quilômetros e a vi ali no meio da sala, dentro do caixão. E meu irmão? Ah, esse menino que herdou um pouco do “trancamento” do pai, a quem cuidou durante 15anos como enfermeiro calado, dedicado, tirando urina pela sonda no horário certo, limpando o cocô da cama, virando o corpo magro do velho para as feridas não apodrecerem. No meio disso, vestia a farda e ia ser soldado da polícia militar na vida, pois foi caminho encontrado lá naquele agreste para ganhar um troco. Meu pai não conseguia agradecer. Meu irmão não conseguia chegar perto. Os dois se amavam demais. Eu estava lá quando o velho agradeceu-o. No leito do hospital, em março do ano passado, num momento de lucidez antes de ir embora dessa Terra, meu pai olhou para seu filho querido em pé ao seu lado, estico o longo braço direito e lhe bateu algumas vezes no peito, sem dizer nada. Não precisava. Choramos todos ali em volta daquela cama de enfermaria pública. Zé Luis dizia assim para sempre: “Aqui está um grande homem!” A morte do nosso pai nos fez abrir nossas principais gavetas. Sim, ele sempre agradeceu por eu ter lhe mostrado, mesmo sem falar, o mundo do cinema, da música, da fotografia, etc. Mas também nunca havíamos declarado e praticado essa coisa chamada amor, o amor que veio das mesmas fontes e nos fez muito parecidos, até na escassez de cabelos na cabeça. Nos falamos todos os dias. Muito, porque há essa maravilha chamada skype. Ele trabalha comigo, pesquisando o material do Recordar é Viver. E desde setembro, quando completou 47 anos, ao receber uma pequena máquina fotográfica digital, se revelou um excepcional artista. Eu acho até que ele está realizando aquilo que não consegui, pois fui para o caminho do jornalismo por conta da fotografia – e me descobri escrevendo. Ricardo Silva toma conta da casa dos meus pais, mora sozinho, tem filha, tem neta, tem talento de sobra. Desenha um álbum com uma longa história em quadrinhos encomendado pela Editora Conrad, continua Polícia Militar, parou de beber há 15 anos, é meu conselheiro, é um grande amor de quem me orgulho de ser irmão e de ter descoberto isso a tempo.

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Uma ideia sobre “Ricardo Silva, meu irmão

  1. Pé Vermelho

    Zé: tudo a ver comigo – Nordeste…cachaça…meu pai de Crato prá cá num pau de arara…Mas Deus é pai e não é padrasto. Santa virtude a sua, a de não virar as costas prás origens e continuar amando os seus. Tem neguinho, e branquinho também, que já se esqueceu de ter chupado manga roubada.

  2. Gerson Guelmann zs

    Aqui da pequena Ivoti, fincada no pé da serra gaúcha, esquecido dos afazeres e curtindo uma preguiça que me faz ter medo de me acostumar, me emocionei com teu relato. Que bela história e que bela lição de amor para se começar um ano!

  3. cesar setti

    zé beto,
    sua história de vida toca os sentimentos mais profundos de quem lê e nos lembra da importância da superação, coragem e amor. bom ano pra vc e saúde aos seus… abc forte

  4. Lina

    Beto,
    Por essas e outras tenho muito orgulho da familia da minha filha. continue com essa pureza de sentimentos e emoções.
    E ao Ricardo, o recado de que é certo que seu talento vai muito além dos jardins de anturio.
    um ano pleno de paz e inspiração a todos.
    lina

  5. glaucio geara

    Meu caro Zé;
    Temos nos encontrado as vêzes pelos caminhos da vida. Porém quando nos encontramos sei que seu forte abraço foi sempre sincero.
    Lí seu texto contando uma emocionante, sincera, real e pura história de uma vida de uma família.
    Quantos Zé Luiz existem na família de cada brasileiro, todos nos lembramos sempre de um. Certamente teu pai continua olhando por vocês e se orgulhando dos filhos que deixou aqui na terra.
    Aí Zé ,continue sempre brilhando.
    Um ótimo 2008
    Deste seu admirador
    Gláucio Geara.

  6. Vania Mara Welte

    Zé Beto, querido amigo!

    A sua dimensão humana e a sua generosidade, em dividir sua vivência conosco, são imensuráveis.

    O seu relato tocante me traz à memória o que dizia Shakespeare: “Nós somos feitos da mesma matéria dos nossos sonhos”.

    Zé Beto, você é assim, sonho e poesia vivos em
    um jovem homem sábio.

    Feliz 2008 para você e família.

    Com imenso carinho, eu o abraço.

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