10:13Bruno, eu e os tiros na cara

Por Jorge Eduardo França Mosquera, jornalista
      

      “Tem gente que não aprende. Ainda leva um tiro na cara e nem vai saber por quê.”

       Era uma ameaça? O sangue subiu até o tampão do crânio e não acreditei no que ouvira.

       Estava a caminho de mais um dia de sobrevivência, caminhando pelo estacionamento do prédio público onde trabalhava, quando um vigilante de empresa de transporte de valores me fez sinal para não entrar por aquela porta. Desviei o caminho e passei entre ele e o carro da transportadora. Foi quando ouvi aquilo.

       Voltei-me e perguntei: “Como é que é?”

       “Não ouviu? Ainda leva um tiro na cara e nem vai saber por quê?”

       A voz, audivelmente alterada vinha da boca de um sujeito visivelmente alterado. Era baixo e atarracado, cabelo cortado à escovinha, uniforme escuro, botinas militares, rádio pendurado no peito, relógio de contrabando e, nas mãos, uma escopeta 32 (ou será 22?).

       A vontade que meu deu foi pular no pescoço daquele infeliz, despreparado e autoritário vigilante, mas diante de uma escopeta não há argumentos verbais nem físicos.

       Guardei a cara dele e fui à Central de Atendimento ao Cidadão, espécie de delegacia geral da Polícia Civil, na André de Barros, onde, contra a vontade do escrivão, lavrei o tal BO. Depois, fui à delegacia das Mercês (não lembro o número do distrito), onde outro escrivão renitente redigiu um TC (termo circunstanciado).

       Exerci minha cidadania e a polícia fez seu papel. A empresa de segurança (cujo nome, honestamente, não lembro) teve de enviar fotos (em fotocópias, é verdade) de todos os seus heróis que haviam trabalhado naquele dia de 2005 (esqueci-me da data, e isso é bom para não ficar remoendo datas inconvenientes). Enfim identifiquei o gajo e levei o caso ao Juizado Especial Criminal. Motivo: ameaça.

       Passado algum tempo e lá estou eu diante da conciliadora do Juizado, uma psicóloga de cujo nome também não me lembro. Ao meu lado, o advogado da transportadora, e, ao lado dele, perto da parede, o herói da escopeta, o defensor intransigente do patrimônio do Banco Itaú, o Shane do Tatuquara. Eu, um pobre diabo que resolveu passar diante de seus olhos.

       Vou resumir a audiência. “Os homens de vocês são preparados?”, perguntei ao causídico. “É claro. Temos responsabilidade. Nossa empresa é das maiores do País nessa área. Nossos homens são treinados à exaustão, especializados em sua atividade, são os melhores.”

       “E como pode um homem superhiperbemtreinado ameaçar dar um tiro na cara de um cidadão só porque ele não deu a volta no quarteirão e resolveu passar entre sua arma e o carro de transporte de milhões de reais do banco?”, arrematei.

       “Ele estava nervoso. Dias atrás passou por uma tentativa de assalto no mesmo local. Ele andava tenso”, tentou explicar o operador do direito.

       “E como a gloriosa empresa de transporte de valores admite colocar na rua um homem armado e tenso? Se houvesse qualquer movimento brusco de minha parte eu levaria um tiro na cara? Se houvesse uma tentativa de assalto, o resultado seria um tiroteio com dezenas de mortos e feridos, inocentes que só passavam pelo local?”

       A resposta foi um silêncio eloqüente, do doutor e do gentil homem de armas.

       A mediadora conseguiu com que a empresa se desculpasse e que eu perdoasse o pistoleiro autorizado. Ficou por isso mesmo? Não. O nome dele está lá, nos escaninhos. Se houver uma próxima – tomara que não ameace mais ninguém e, mais, que nunca atire em ninguém, se é que ainda anda por aí -, terá de se explicar diante de um juiz de verdade.

       O brucutu que ameaçou minha vida – por bravata, tensão nervosa ou mau-caratismo mesmo – é apenas um entre centenas de cretinos armados que trabalham nessas empresas de segurança. São eles que, invariavelmente, diante de profissionais do crime, armados como eles, dão uns tirinhos pra cima e se escondem onde podem. Mas, quando enfrentam cidadãos como eu e você, querem nos ensinar até como caminhar na rua. Tente passar perto de um carro desses quando estacionado na calçada, na porta de um banco.

       Essas empresas são teoricamente fiscalizadas pela Polícia Federal. Gostaria de saber se são de fato fiscalizadas. Gostaria de saber por que seus carros podem parar em qualquer lugar, a qualquer hora – e que se danem o trânsito e os pedestres. Gostaria de saber quem são seus proprietários, se é verdadeira essa história de que são oficiais de alto coturno do Exército ou da PM. Gostaria de saber se seus bravos centuriões têm ficha limpa, recebem treinamento, têm assistência médica e psicológica, são retirados das ruas quando estão, digamos, tensos.

       Tudo isso me ocorre agora, quando leio, aparvalhado, a história do homicídio do garoto Bruno, filho do amigo (não nos vemos há muito tempo) Vinícius Coelho. Está cada vez mais perigoso viver, diria o mestre Guimarães Rosa. Que jeito de morrer, digo eu.

       Os caras que liquidaram o Bruno deveriam estar tensos naquela noite. Onde já se viu pichar muro de clínica? “Outro dia quase enfrentei assaltantes na bala, estou nervoso, e vem esse moleque pichar muro? Ara…”

       Talvez tenham pensado que Bruno, que seqüestraram, mantiveram em cárcere privado, torturaram e executaram a sangue quente fosse um bebedor de tubão da periferia, desses que vêm lá da Vila Piroquinha para se inserir socialmente por meio da Império Alviverde.

       Certamente não sabiam que era um garoto de classe média, filho de jornalistas, que logo seria procurado e teria o paradeiro descoberto.

       Esses caras que acabaram com a vida do Bruno são como aquele que, por bravata ou tensão, ameaçou mandar-me um tiro na cara, sem que eu soubesse por quê, sem que eu tivesse aprendido que não se mexe com vigilante armado.

       São criminosos fardados, armados – e “tensos”, como diria o douto procurador da transportadora de valores.

       A sociedade precisa acordar. O crime não está só do lado dos bandidos, é nosso vizinho também. E as vítimas não são mais os bandidinhos pés-de-chinelo ou pichadores da periferia. Ontem quase fui eu, hoje foi o Bruno, amanhã pode ser qualquer outro.

       Quero que as autoridades me digam como devo agir quando passar diante de um vigilante armado. Ergo as mãos ou bato continência?

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Uma ideia sobre “Bruno, eu e os tiros na cara

  1. Matusalém

    Jorge Eduardo França Mosquera: parabéns pela atitude, pelo exemplo de cidadania e pelo belíssimo texto. Vou te dizer uma coisa: frequento eventualmente um supermercado onde essa gente comparece para recolher a féria do dia, abastecer os caixas automáticos dos bancos, essas coisas. Quando vou chegando e vejo a “viatura” que parece o carro dos Flinstones, começa a sudorese e a invocação de todos os Santos que minha combalida memória permite lembrar. Não sei se vou pela esquerda, pela direita, se dou marcha-a-ré, se procuro um armazém de bairro, se faço greve de fome, etc. O semblante dos caras é a prova viva do acerto da teoria de Lombroso. A postura e as armas são as mesmas dos “marines” americanos no Iraque. Resumindo: a experiência de passar perto do esquadrão é pior, muito pior, do que a de um atleticano vestido com a camiseta da “fanáticos” que resolve transitar no meio da torcida coxa, ou a de um membro suicida da “império” que faz o contrário.

  2. Jorge Martins

    Caro Jorge.
    Lendo seu comentário, apesar de algumas verdades, percebe-se a profunda marca do preconceito social. De ha muito tempo que os desvios sociais deixaram de pertencer aos adolescentes das “vilinhas” que buscam inserção social.
    É este mais um eloqüente caso que mostra que desvios sociais não são mais privilégios de meninos pobres, sem oportunidades e perspectivas.
    Este rapaz era filho de classe média esclarecida, de boa inserção social, com boas oportunidades e perspectivas.
    Por que não estava dentro de uma sala de aula ou envolvido com algum projeto mais sério?
    Ou será que acreditava que sua condição social lhe garantiria a impunidade?

  3. carlos

    Santa indignação e belíssimo texto do Jorjão. Mitiga a impotência de cidadãos estufefactos com a violência descontrolada supostamente destinada à proteção do patrimônio.

  4. Jeremias, o bom

    Quando, na década de 70, a educação pública entrou em colapso, a classe média pouco se lixou, pois tinha dinheiro para pagar escola particular para os seus pimpolhos. Educação pública era “coisa pra pobre”. Hoje tem que dar trambique nos colégios e suplicar descontos e “bolsas” para os diretores de escola.

    Quando, na década de 80, a saúde pública foi para a cucuia, a classe média não estava nem aí, pois o INPS era “coisa de pobre”. Hoje vai ao Procon e aos programas populares de rádio esbravejar contra os planos de saúde, que custam o olho da cara.

    Assim também se deu com o desmantelamento da segurança pública, na década de 90. A classe média deu de ombros, pois podia comprar um rottweiler, colocar cerca elétrica ou contratar uma “empresa” de vigilância, com seus simpáticos orangotangos. Não deu outra: mais um barco furado! Percebe-se hoje que não há controle social sobre os tais agentes de segurança particular.

    É a tese do estado mínimo que está mostrando as suas conseqüências.

  5. Rosa

    Endosso todas as palavras do Jorjão.
    Outro dia vi dois guardas municipais passando a maior bronca em um entregador de galões de água mineral, porque o garoto estava no calçadão.
    Tudo bem, eles tinham razão.
    Mas então porque é que esses tanques de guerra dos carros de valores, com seus ogros armados pra valer, podem circular entre pedestres com crianças, e o trabalhador, com um peso que nem o permitiria andar rápido, não pode?
    Se eles cuidam do patrimônio dos bancos, quem vai cuidar do nosso patrimônio humano?
    Ridiculo!

  6. valdecir

    zé. por favor publique esse texto e não o anterior.

    é cara jorjão, estamos encurralados entre os trabucos dos bandidos e as escopetadas das autoridades…. é esse o vácuo que nos cabe nesse fim de mundo, vagamundo. parabéns pelo texto.

  7. valério cicqueira

    Zé beto;

    Parabens pela observação (texto). Mas acho que você agiu com preconceito quando fala dos “meninos dos tubão”. Dá entender que eles podem ser assassinado e um filho de “classe média” não. Eu fiquei perplexo pela prepotência dos seguranças assassinos, não queria ficar perplexo com sua postura. Ou estou enganado?

  8. zebeto

    Caro Valério Cicqueira, você deveria endereçar sua reclamação ao autor do texto, Jorge Eduardo França Mosqueira, cuja assinatura está bem visível antes do início do texto. De qualquer forma, obrigado pela leitura e participação. Saúde.

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